Descentralização

Tijolo por tijolo num desenho mágico
Experiência educativa em arte na Vila das Laranjeiras

Luciano Laner
Oficineiro da Descentralização da Cultura de Porto Alegre
Dezembro de 2011

Na Vila das Laranjeiras (Jardim Leopoldina), onde estou realizando uma oficina de arte pela Descentralização da Cultura, o tijolo vermelho de seis furos é um elemento onipresente para a visão de quem chega ao lugar. Do alto da rua de acesso, o olhar paira sobre o casario que desce a ladeira e se ramifica pelas vielas e becos. A textura das parades de tijolos, na maioria das vezes nuas, preenche o olhar do recém chegado com o mosaico tramado e multi-tonal das fieiras de alvenaria. Nos pátios das casas, assim como no pátio da própria Associação dos Moradores e Amigos da Vila das Laranjeiras, onde estou trabalhando com um grupo de 4 adolescentes, não faltam pilhas de tijolos vermelhos, alaranjados, queimados, quebrados aos cacos e amontoados ao longo das cercas de ripa de madeira ou no meio do capinzal. Talvez só o olhar fresco de um visitante perceba tal particularidade, livre que é da anestesia do cotiano, que a tudo achata e desbota.

Esta característica construtiva da vila me fez pensar no contexto social do lugar e no significado da casa de alvenaria para uma comunidade periférica da cidade. Imagino que a onquista de uma casa de tijolos traz em si um novo status e evoca valores como segurança, estabilidade, permanência e vitória para as famílias que as constroem e as habitam, mesmo que nuas e inacabadas. Eu mesmo morei durante a minha infância e parte da minha adolescência em uma casa de madeira em um bairro outrora simples de Canoas. A mudança para a casa de alvenaria que o meu pai construiu lá por 1989 nos fez ver a vida de maneira diferente. Nossa auto-estima se modificou com a casa nova, mais sólida, mais segura, mais confortável, mais bela e imponente.

Pensando nestas questões, introduzi o casario e os tijolos como modelos para exercícios de representação gráfica já em uma das primeiros propostas de trabalho levadas ao grupo.

 

 

O primeiro exercício proposto para os oficinandos foi um desenho onde cada um deveria se apresentar através do traço livre. Observei que representavam certas coisas não como elas são na realidade concreta, mas sim como elas são no imaginário infantil: um quadrado com um triângulo para representar uma casa, ou uma árvore com copa de “algodão”. A fim de fazer com que percebessem a diferença entre um desenho de representação de um modelo concreto e outro traçado a partir de um imaginário ligado ao censo comum, levei-os para a rua e pedi que observassem o casario. Eles deveriam escolher uma casa e tentar representá-la na sua especificidade. O resultado foi surpreendentemente distinto e maduro em relação ao primeiro desenho. Já neste trabalho, a textura dos tijolos surgiu como valor gráfico e informação do contexto da vila.

No segundo encontro com o grupo, propus que fizéssemos alguns exercícios de desenho de observação de natureza morta, a fim de conhecer o repertório gráfico dos alunos e identificar pontos a serem desenvolvidos ao longo da oficina. Entre os objetos dispostos como modelos sobre a mesa, estava um tijolo.

Nos exercícios de natureza morta, o tijolo destacou-se como objeto de interesse do grupo em função do desafio que representou enquanto representação da perspectiva. Assim, o tijolo tornou-se foco do trabalho pela simples curiosidade de representar a tridimensionalidade do volume no desenho bidimensional. Neste momento, intrumentalizou-se os alunos com alguns sistemas de representação de perspectiva, como a perspectiva cônica e a perspectiva isométrica.

A partir deste exercício, propus ao grupo perceber o desenho não como conjunto de linhas sobre uma superfície ou plano, mas como objeto ou forma que poderia ser deslocada da relação figura-fundo e entendida como corpo inserido no espaço real, deixando de ser visto apenas como imagem contida no espaço bidimensional de representação da folha de papel. O resultado deste processo nos levou ao primeiro desdobramento do trabalho, que foi o de recortar a figura do tijolo do papel e transferir as formas para outros suportes. As figuras dos tijolos deram origem a novas imagens-objetos recortadas em papel colorido e figuras de revistas. A operação proporcionou o entendimento da figura como forma autônoma, como corpo, livre da relação figura-fundo implícita na percepção do desenho contido na superfície retangular e bidimensional da folha de papel. Tais questões foram caras as artistas neo-concretos brasileiros, como Hélio Oiticica e Ligya Clark, que buscaram romper com espaço de representação metafórico da pintura bidimensional, contida nos limites físicos da moldura, buscando no espaço-tempo real, onde se encontra o espectador, a solução para estabelecer uma nova relação entre o corpo do espectador e o corpo da obra de arte.

Os alunos perceberam ainda a possibilidade de se realizar desdobramentos a partir do exercício de desenho na construção de novas imagens e da exploração de um outro espaço de representação que não o da folha de papel, utilizando as figuras como formas que poderiam ser empilhadas e justapostas diretamente sobre a mesa ou sobre a parede. A trama meta-linguística do trabalho abriu o entendimento de processos de criação artística através de operações de manipulação do desenho, aproximando fazeres tradicionais do desenho à processos de criação presentes na arte contemporânea.

Os recortes de revistas possibilitaram ainda a descoberta de narrativas visuais, ao enquadrarem figuras de revistas, agora contidas no interior dos “tijolos”, como histórias simultâneas que estavam sendo contadas dentro destes “volumes habitados”.

 

 

A partir deste momento, o tijolo assume o papel de protagonista na condução da oficina, a fim de introduzir aos alunos conceitos de apropriação, deslocamento, ressignificação e da exploração da interface entre imagem e escultura. Assim, pensou-se no tijolo como material artístico para a realização de experiências de intervenção no pátio da Associação. A operação de apropriação de materiais cotidianos e não-artísticos como materiais expressivos para a criação de discursos poéticos é característica da arte contemporânea que busca ampliar os limites da arte e estabelecer vínculos com a vida e com as coisas ordinárias do dia-a-dia, evocando as experiências do espectador como ponto de partida para a construção de novos significados a partir de códigos conhecidos e compartilhados por todos.

Assim, o tijolo foi proposto como unidade modular para a contrução de esculturas e imagens, imbricando os conceitos de desenho, pintura, escultura e intervenção. Inicialmente, imaginei propor a utilização do tijolo como “pixel” para a construção de imagens a partir de malhas, realizando operações de adição e subtração dos módulos. No entanto, os alunos propuseram operações de empilhamento, criando figuras humanas como esculturas de tijolos. Os tijolos vistos como figuras humanas acrescentaram novas camadas de sentido ao objeto conhecido: tijolo-casa-habitante? Os empilhamentos colocaram em evidência as qualidades intrincecas do tijolo como material de construção. Se um tijolo oferece solidez, resistência e estabilidade para uma casa, por exemplo, as situações de equilíbiro precário das esculturas proposta pelos alunos introduziram sentidos antagônicos aos tijolos, tais como fragilidade, desequilíbrio, instabilidade.

 

 

Desta forma, foi possível fazê-los perceber como operar com os significados de um material adotado como matéria-prima para um trabalho de arte e como podemos, a partir de noções comuns, ampliar os sentidos de um objeto e ressignificá-lo a partir da forma como o utilizamos. Estas operações semânticas se apresentaram ao grupo pela tensão entre as qualidades de um tijolo utilizado como material de construção e as qualidades que ele passou a evocar nas situações criadas na montagem das escuturas.

Ampliou-se ainda o conceito de desdobramento como processo criativo em arte. Os empilhamentos e as figuras criadas com os tijolos serviram novamente como modelos para exercícios de desenho e para a transferência das imagens para novos suportes, sempre com a ideia de forma autônoma e de corpo no espaço, ampliando a rede de sentidos e a relação meta-linguistica dentro da produção do grupo.

O tijolo e as operações que ele possibilitou ao grupo não representam um processo aleatório de criação, mas sim a proposição de um plano de trabalho que deixou espaço para a criação a espontaneidade do grupo, a fim de proporcionar descobertas e aproximar os alunos da oficina de conceitos e noções presentes na arte contemporânea, que rompem com as noções clássicas de arte ligadas ao desenho, à pintura e a escultura como categorias estabelecidas. O objetivo do trabalho foi proporcionar a aquisição de repertório formal e conceitual, colocando os alunos em contato com práticas artísticas contemporâneas através de experiências e descobertas acessíveis a eles, vinculando o cotidiano e o contexto da vila com a produção da oficina ao destacar um elemento presente no ambiente onde vivem como material expressivo, que contém em si significados e relações que dizem respeito à vida dos oficinandos, à sua vizinhança e ao seu contexto social.

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