Em direção ao chão

Em direção ao chão

Eduardo de Souza Xavier
Publicado em Panorama Crítico

À direita de minha mesa de trabalho há uma janela. Através dela escuto o som de carros que passam abaixo na rua. Também posso perceber vários ângulos desta rua, por exemplo, quando eu me viro em direção à janela, ou quando me aproximo dela e olho para baixo. Nestes ângulos possíveis quando me desloco no espaço de meu apartamento, posso vislumbrar a malha de linhas retas formada pela verticalidade dos prédios, seus telhados e janelas, e a horizontalidade escurecida do asfalto pelo qual passam os carros. Tudo isso produz o ruído que sempre caracterizou, para mim, a sensação muito concreta de que habito uma cidade.

Ao prostrar-se frente ao trabalho de Luciano Laner, Janela para o céu, a sensação de estar na beira da janela de um apartamento olhando para a rua – este recorte da cidade – pode vir à tona. Mas há uma inversão desse olhar. A tomada da fotografia é desde o chão até o topo dos prédios que enquadram a imagem, e não de cima para baixo. A vista do fotógrafo é em direção ao céu. A imagem é apresentada no chão e o olhar do espectador é, portanto, deslocado e forçado para baixo.

Está retratado o vão de um prédio. Ampliada em grandes dimensões, a imagem apresentada dá a oportunidade e ao mesmo tempo o convite de percorrê-la em seus mínimos detalhes. As roupas penduradas nos varais, os canos e a sujeira que acinzenta algumas partes da parede, as janelas das áreas de serviço dos apartamentos, o cimento que reveste a arquitetura, o próprio tipo de arquitetura que está retratada. .

A estrutura expográfica criada por Luciano Laner, espécie de aparato para ver a imagem, ou instalação fotográfica, dá a chance de chegar perto destes detalhes. Dá a entender que o artista quer que entremos na imagem. Uma estrutura de madeira, pintada de preto, foi criada para receber a fotografia, que ocupa grande parte do piso da galeria. Esta plataforma, em cima da qual o espectador pode caminhar, destaca do chão a fotografia, como uma grande moldura.

A primeira analogia que pode ser feita é da imagem no chão como uma piscina, e a rampa para subirmos nessa estrutura, uma espécie de trampolim. O azul do céu, deitado no chão e destacado pela iluminação, faz as vezes de água na qual se pode mergulhar. Mas essa “água azul”, melhor dizendo, este azul uniforme do céu, está, na verdade, emoldurado por prédios. Se o céu está ali enquanto metáfora para uma paisagem, esta paisagem está, por sua vez, duplamente emoldurada. Em primeira instância oprimida pelos prédios à sua volta. E depois, pela estrutura específica ali colocada, que dá um tom cenográfico para a exposição.

A imagem de Luciano Laner nos mostra lugares que se repetem tantas vezes no cotidiano que eles se tornam praticamente não-lugares, lugares quaisquer ou lugares comuns. O que a imagem nos dá é o espaço do vão entre prédios vizinhos. É a cidade, em suma, que protagoniza a cena. Ela e sua face não vista, que é colocada para o lado de dentro, o intervalo entre os prédios, a parte dos fundos, o que não está na fachada. De certa maneira, é um tipo de resto do que vemos na cidade. Janela para o céu deflagra maneiras de olhar para espaços que nos cercam. De estetizá-los, dar a eles uma leitura formal e vivenciá-los através da bidimensionalidade. Faz uma leitura fotográfica deste espaço urbano que ocupamos e que, muitas vezes, nos oprime.

Nesta obra, Luciano Laner convoca-nos a pensar sobre essa coisa viva pela qual passamos todos os dias – a cidade. De certa maneira, é um modo instituído de vida que a cidade nos coloca. Através da arquitetura que a constitui podem ser deflagrados modos de vida e de comportamento, inseridos em determinados contextos (sociais, culturais, econômicos). Muitas vezes, nas cidades, a arquitetura comprime os sujeitos em apartamentos, fazendo do céu – elemento em geral vasto – algo pouco visto, restrito e, por que não dizer, confinado. Fazer do chão que pisamos o próprio céu é possibilitar, através da arte, a inversão dessa lógica.

A fotografia é tomada do pátio do apartamento do artista. O que nos diz, em primeira instância, que há um desejo de transposição desta paisagem confinada vista por ele todos os dias. E se o céu é o centro da imagem, ele ali figura como metáfora desta libertação, ele está num sentido ascendente, deflagra uma aspiração. E se está no chão, torna-se algo próximo, mais íntimo. A escala da fotografia traz, por suas grandes dimensões e, principalmente, pela maneira como ocupa o espaço, uma relação mais corporal com a fotografia. Observa-la é dar-se conta de estar ali, caminhando em sua volta. Ao entrar na sala de exposição já se entra diretamente dentro da obra. Atualizam-se então, certas questões da arte minimalista, como a percepção da obra, a tensão entre seus próprios objetos, o espaço que eles ocupam e o corpo do espectador. Em certo sentido, o trabalho remete também àquela experiência propriamente fenomenológica narrada nas obras de Richard Serra, por exemplo.

Olhar para este chão é como dar um mergulho desde a janela de um apartamento da cidade, subversivamente. Pois mergulhar nessa rotina urbana que contém alta dose de um “delírio mimético” – aquele do qual nos fala o psicanalista Edson Sousa – é ir cada vez mais em direção ao chão, no sentido mais melancólico do gesto. Mas é, simultaneamente, abrir um furo em direção ao céu, no sentido mais utópico desse mesmo gesto.

A abstração, aqui no contexto da produção de um jovem artista como Laner, vem na esteira de um concretismo paulista, como resultado de uma racionalidade do olhar. Mas apenas superficialmente. No interior das formas retas que configuram a imagem, essencialmente, enquanto desenho, habitam todas estas informações acerca de um modo de vida. Nestas frestas, estão contidas as potências que animam um pensamento crítico frente às questões mais prementes de nosso cotidiano, seja no que diz respeito às vivências da cidade, ou da arte em si – supondo que há uma dissociação possível entre as duas. Neste ínterim, há uma concepção da própria arte: de que ela possibilita uma vertigem, um rompimento, uma vista ao abismo através de sua simples vivência.

A exposição Janela para o céu, de Luciano Laner, foi apresentada entre 14 de agosto e 12 de setembro de 2009 na Sala da Fonte da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.

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